Dados demográficos dos Estados Unidos apontam que os métodos usados para classificar a população em categorias raciais não acompanharam o ritmo das mudanças nas formas como as pessoas se identificam.
No último Censo, no ano passado, o número de pessoas que marcaram a opção “multirracial”, por exemplo, subiu 276%. Como o levantamento americano permite que se escolha mais de uma opção de declaração racial, outro fenômeno que chamou a atenção dos demógrafos foi o crescimento de 129% entre os que marcaram a opção “alguma outra raça”.
De acordo com os resultados do Censo, 15,1% da população dos EUA está nessa categoria, o que a tornaria o segundo maior grupo racial do país, atrás apenas da parcela de americanos que se declara branca e à frente dos que se identificam como negros ou afroamericanos.
Considerando que a classificação foi criada com o intuito de abranger apenas quem não se identifica com as categorias existentes, um aumento tão expressivo denota que grande parte dos americanos pode estar reavaliando sua identidade racial.
Para Denilde Holzhacker, coordenadora do núcleo de estudos das Américas da ESPM, ao menos duas hipóteses podem explicar as altas porcentagens de variação. A primeira é o debate sobre a inclusão dos latinos no quadro demográfico dos EUA. “Esse grupo é muito diverso em termos étnicos; há latinos brancos, negros, da segunda geração, e [no Censo] há um déficit nas classificações para abarcar toda essa diversidade.”
Outro argumento se refere aos afroamericanos e à maior aceitação social de casamentos inter-raciais. “Caíram as barreiras legais [que criminalizavam a prática durante os períodos de segregação], mas havia pouca tolerância com as uniões entre brancos e negros”, diz. As comissões que organizam os Censos, segundo a especialista, têm buscado mais formas de contemplar essa tendência nos levantamentos.
No que se refere à maneira como vê a própria raça, um fenômeno parecido ocorre com a população que se declara negra no Brasil. De acordo com os dados mais recentes da Pnad (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio), do IBGE, os brasileiros que se identificam como pretos ou pardos representam 54,2% da população.
Essa maioria numérica, no entanto, tem sido influenciada pela reflexão sobre o conceito de identidade racial. É o que aponta um estudo realizado por Josimar Gonçalves de Jesus, doutor em economia aplicada pela Esalq/USP. Ao analisar dados demográficos de 1995 a 2015 por meio de um modelo matemático, o economista inferiu que 90,9% do aumento da proporção de negros no total da população brasileira se deveu à mudança na forma como as pessoas veem a si mesmas —sua identidade racial.
“O Brasil não está se tornando negro, está se reconhecendo como tal”, diz Jesus. Segundo ele, embora ainda haja muito em que avançar, a forte articulação dos movimentos negros vem fazendo com que se perceba cada vez mais que não há vergonha alguma em se afirmar como sendo desse grupo.
A ressignificação da identidade racial já dura séculos, remetendo ao Brasil colonial. Àquela época, interessava às elites brancas que os diferentes grupos sociais entendessem o conceito de raça como um fator negociável. “Essa ideia de fluidez racial trazia em si a ideologia do branqueamento. Se o indivíduo não tinha a pele tão escura, por exemplo, e passava por algum movimento no sentido de ascender socialmente, poderia ser lido como ‘menos negro’ pela sociedade”, explica.
Ao mesmo tempo, segundo o pesquisador aposentado do IBGE José Luis Petruccelli, é natural que as classificações raciais sejam periodicamente reavaliadas e questionadas, já que o conceito de raça é fruto de construções sociais, não biológicas.
“Ninguém tem uma característica que o defina de uma vez por todas, de seu nascimento até o dia de sua morte, como um elemento qualificativo em relação à sua raça”, diz. “O conceito é dinâmico, muda com o tempo, com o lugar e com o próprio indivíduo.”
Organizador da publicação que explica e estabelece os fundamentos das classificações raciais usadas pelo IBGE, Petruccelli explica que a metodologia aplicada nos diferentes levantamentos censitários tem papel fundamental na construção das identidades —e pode ajudar a entender os fenômenos demográficos observados mundo afora.
A Pnad de 1976, por exemplo, optou por fazer questões abertas sobre a declaração racial, sem apresentar opções preestabelecidas. O resultado foi a coleta de 136 classificações raciais, com categorias como “café com leite”, “branca melada”, “branca suja”, “alva escura” e “burro quando foge”.
Nos EUA, até a década de 1960, eram os recenseadores que determinavam a classificação racial dos entrevistados —o que, no jargão demográfico, é denominado heteroatribuição. Essa metodologia tendia a ser particularmente prejudicial e preconceituosa contra negros e latinos. Mexicanos, por exemplo, precisavam ser declarados como brancos se quisessem dar entrada em um pedido de naturalização. Na prática, apenas pessoas brancas podiam ser chamadas de americanas.
Na Argentina, a categoria “afrodescendente” apareceu pela primeira vez no Censo em 2010. Adiado pela pandemia, o próximo levantamento, em 2022, trará ainda a possibilidade de se declarar “negro” —embora haja críticas ao uso do termo, frequentemente utilizado de forma pejorativa entre os argentinos. No Chile, são contabilizadas como negras as pessoas que, questionadas sobre a que povo indígena pertencem, especificaram na categoria “outro” que eram afrodescendentes.
A França, principal destino de uma grande quantidade de imigrantes de países africanos e caribenhos, não coleta dados demográficos com base em classificações raciais. Mais que isso: no país o tema é tabu e esse tipo de levantamento pode ser considerado ilegal.
A Alemanha, com seu sombrio histórico de crimes de ódio com motivação racial, limita a informação sobre raça a eventuais “origens migrantes”. Há ainda setores que propõem a remoção do termo “raça” da Constituição, em parte porque a palavra, assim como no português, também pode ser utilizada para se referir a animais.
Para Petruccelli, ainda que alguns países optem por incluir categorias raciais tratadas como equivalentes a “negros” ou “afrodescendentes”, essa escolha metodológica pode representar uma tentativa de, se não mascarar, ao menos adiar debates estruturais. “Também expressa o desejo de se apresentar como uma sociedade com a homogeneidade racial que nenhum país tem. Todos somos misturados e todos descendemos de populações diversas ao longo da nossa história.”
Fonte: BN